Oh, por nossas almas, não poderiam os violinos terem a mesma densidade do olhar? Não que não nos façam deitar os pensamentos sobre um altar de utopias e observar nossas flores a desabrochar. Mas, explico, o que me faz lembrar de uma confortável e sutil presença, resgata também a vasta memória de que a mesma distante está, sem que imagem alguma eu possa concretizar se não a de oceanos e quilômetros que possam nos separar. Para que entendas com clareza, imaginemos um milionário que sempre obtém qualquer bem material que quer, e em sua mansão enclausura tudo o que lhe pertence, até mesmo presentes recebidos pelo imensurável carinho de uma certa natureza do destino. Eu disse "enclausurar", não simplesmente trancar as portas à chave; mas não permitir que de modo algum saiam dali. O medo de perder sempre o aterrorizou, e sempre o perturbou com a seguinte questão: se o homem que uma vez considerado sábio teme o poder das próprias decisões; o que tens tu, então, o imponente magnata aquiridor, que medo ainda tem de perder o que lhe pertence? Isso o debruçara radicalmente sobre o penhasco de uma grosseira conclusão: que aquele homem não era sábio e que ele nada possuía. Agora imaginemos este imponente milionário na pele de um admirador. Ora, por nossas almas, é uma tortura, porém incontestável verdade (após medi-los como tal), admitir que os apaixonados admiradores nada possuem. Por isso suplico — pela inspiração dos meus dons, ou pelo insight do mais dedicado compositor — e imploro por uma canção que me traga a vital magnificência dos olhos encantadores do Lírio que me aprisionou nos sentimentos mais obscuros da psique humana, de tal forma que se não ouvi-la até o amanhecer, morta será dita a flor que na primavera desabrochou — quando (se não me é falsa a memória) fora regada pelos traços subliminares, ainda radiantes, de quem falo.
Lírio azul, lírio branco ou vermelho, de que me importam as cores que me trazem tal presença se agora só o que vejo é um lírio negro? Amarei este, então, se é assim que posso tê-la no coração; infiel presença que talvez nunca tive; infiel majestade do luar noturno, infiel flor que não se submete a ser apenas um lírio, há de ser, desde quando chegara a este mundo, a essência de todos os lírios. Ah, pelos obscuros contos de Allan Poe, Lírio Negro seria minha Ligéia. Tão forte desejo sua presença que seria capaz de suspender as regras do destino; e por meios metafísicos, forçar sua migração para um corpo mais próximo. Por vezes encontro-me a duvidar de sua existência longe de mim. Poderia ela ser qualquer conhecido, porém ainda não descoberta (ou despertada). Mas esta flor, como Ligéia, não está morta para efetuar um migração para outro corpo. Está apenas distante, além das muitas camadas da parede de sombras que nos separa, na qual essas sombras são as pessoas comuns. Lírio Negro se encontra até mesmo além de minha débil compreensão sobre sua real aparência. Deixo claro, antes que se levantem hipóteses desnecessárias, que não discurso sobre uma personagem fictícia. Lírio Negro existe, e está a viver pelas Terras donde o vinho é mais saboroso. Um vinho que desce fervente ainda que passe por tais gélidos e recheados lábios escarlates de pura delicadeza e maciez, penso eu. Vinho que preenche e enriquece a grande "terra de bois". Ah, novamente fui pego pela intensidade das palavras que tentam descrevê-la. Já me colorem a memória e formam tantas belas artes apenas por tentarem descrever seus lábios em contato com a cor e sabor do vinho! Colorem-na também, ingenuamente, por tentarem contar cada centímetro de distância para chegar à margem de seu país. Colorem-na para que tardiamente eu perceba que a arte que não é observada por atenciosos olhares se desgasta — perde a cor — e não há violinos a resgate, pois, o que me faz lembrar de uma confortável e sutil presença, mergulha-me na vasta memória de que a mesma distante es... Oh, isto é o que significa Lírio Negro.
"Para alguém pra lá do Atlântico."
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