"Refugiado. Finalmente em paz e longe daquele cenário apocalíptico. Há ruínas lá fora. Aqui, neste abandonado apartamento, há sentimentos. Aqui, entre paredes cinzas e num confortável sofá bordô de couro, penso nas minhas lembranças com o coração acelerado e um pouco chateado pelos que estão longe e não mais entre nós, ou melhor, entre eu e meu recinto. Sou o único aqui. Me sinto verdadeiramente sozinho, mas feliz de alguma forma. "Feliz" é uma palavra muito estranha para se usar agora, neste fim de mundo. Mas a verdade é essa. — E além de feliz, me sinto acompanhado. — Seriam espíritos do bem me confortando com sua admirável presença? Talvez sejam espíritos daqueles que amo. Já deliro tanto sozinho que posso ver no reflexo do espelho de pé, levemente inclinado, a forma física de um amigo sentado no outro sofá. Ele está folgado, está relaxado e tranquilo, com a cabeça levemente inclinada e um sorriso bobo no rosto. Posso estar ficando louco, mas preciso lhe dizer "como você está bonito, amigo!". Elegante e confortável presença seria esta! Ou é? Não sei. Acho que ouvi algo lá na cozinha: talheres contra um prato de porcelana. Pratos de porcelana antigos como os da minha mãe. Este apartamento ainda está em boas condições para o estrago causado pela guerra. Ele é o único que restou de pé em meio aos destroços da cidade. Tão intrigante quanto esses sons que escuto: sons de passos, de vozes distantes e embaralhadas. Parece até o ambiente de um restaurante. Eu vejo uma nova forma. Um novo delírio! Parece que uma amiga, minha querida amiga, está almoçando à mesa, às sombras, além da luz do sol ardente que entra pelo pequeno vitro da cozinha. Apenas me aproximarei, e não direi nada. Isto parece tão real...
— Você não sabe o estrago da grande chuva, semana passada! Chegou a algar minha casa! Ela era forte, mas sem ventanias, e...
Ela fala; eu a ouço — isso é tão real quanto um sonho..."
Pedro Amorim sobre "aquele sonho" - 20/03/2013