20 de outubro de 2012

Eutanásia

Um trago de voz na escuridão, e me apareceram alguns fios de teus cabelos: lisos, longos e suaves. Um gesto rápido e eles se movimentaram, todos juntos, numa ondulação só. Um trago de juízo à beira de um surto, e minhas pupilas se abriram, pude ver tua silhueta e formosura na ausência da luz. Vi metade do teu rosto, pois estavas de costas, a olhar para a janela fechada.  Querias apreciar o luar?  Então traguei meus medos — sim, tive medo de ti — e libertei meus passos. Em frente à janela puxei a tranca, mas não conseguira abri-la. Após algumas falhas tentativas vi que, de fato, não era possível abri-la, agora não mais. Permaneci estático cerca de 10 ou 15 segundos até resolver virar-me para ti; minha cabeça questionava e refletia numa intensidade de estouro e desespero o ato de ir até ali. Quando me virei, notei que a metade que vi do teu rosto era única. Em meio à escuridão tua pele levemente brilhava, mas apenas cobria metade o rosto, a outra metade fora censurada por um vago vazio, não existia. Ora me sentia surpreso, ora triste. — Por que não existias ainda por completo? — Traguei meus sentimentos, meus sentidos e pré-conceitos, e dei dois passos a frente. Passos suficientes para permanecer exatamente face a face contigo. Eu olhava profundamente dentro de teu olho esquerdo até que, assim como uma nuvem a ganhar densidade e forma, tua segunda metade apareceu, e brilhou na mesma intensidade que a outra. Tu estavas quase completa. Faltavam-lhe somente as mãos, pés, e talvez um manifesto de voz. Dei-te então meu tato, olfato e minha audição. E logo tu podias tocar-me, ouvir e caminhar passo a passo. Traguei meus valores e me cedi a ti — àquela obscura e intensa aparição, súbita como a de um fantasma a me perturbar durante as mais sombrias madrugadas, porém, fantasma pelo qual me apaixonei. Cedi a ti tudo o que eu tinha para que pudesse conhecer-te. Cedi a ti tudo o que me cabia. Exceto o mais importante: meu coração. Notei que tu não tinhas calor; era óbvio que eras apenas um espírito a vagar pela meia-noite, mas não me parecias somente isso. Tu me atraíra e assim tinha os meus sentidos, voz, ideias, vontades e medos. Conhecera-me por completo através dos riscos que corri em troca de tua manifestação — e fora tamanha manifestação, seguida de profunda indagação, que pude transmitir-lhe pensamentos — e lembro-me que disse-te: "Agora que tens tudo, por que não pára de olhar para o vazio da janela e olha para dentro dos meus olhos? Tu queres liberdade, mas me prende a ti! Como posso pesar em justiça uma resposta para isso? A única forma seria... Me completar, me completar a ti".

Então, por inteiro, me cedi a ti:

— Trago meu próprio coração em tua virtude, e logo terás calor e liberdade. Terás a mim também, mas de outra forma, já que não poderei, aqui e assim, continuar a existir. Encerro minha história agora, e enterro-me nos recônditos de tua alma, pois, não tenho mãos nem pés, e porto apenas metade de meu rosto. Leve-me para onde quiseres — a paixão pela qual me sacrifiquei te salvou. És livre agora. Tens meus pés para ir afora...

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