30 de outubro de 2011

Miradouro Carmesim:..

Arquivos da Psique [10]

       "Oh Psique, por que escolheste as fissuras da Terra para se esconder? Mesmo que não haja mais luz, eu te encontrarei. Mesmo que me abandones, eu te perseguirei, agora, como o corpo que procura a alma. Pois sei quem és, além de frágil essência, és Psique, a minha psique. Fragmento o qual deixei cair no maior perigo de meus descuidos. Minha alma, peço-lhe perdão, pois tardei em bradar aos trovões que tu és minha. Preciso de ti, agora que não me restam miragens, ilusões, nem a presença de mim mesmo."

Trovejam notas do céu
Notas de sangue

Que banham meus sonhos
Submersos no fel

Sonhos de memórias antigas
De sentidos gélidos
Como um álbum de fotografias
De páginas muito velhas...

Reminiscências amarelecidas
De capturas perceptivas
Sempre recentes e eternas
Como histórias desaparecidas.

Deixaste-me perante as portas do céu
Num falso vale de infernos
Cobriste-me com a mais cínica paixão
Numa cilada durante décadas
Para que a seguir do dia em que fostes embora,
Eu nunca mais te entenda por completo.

Atuaste de forma excêntrica
Até que se esgotassem meus elogios

Mas, confesso-lhe, pequena flor:

Teu olhar cristalino me congelou para sempre na tablatura do deserto.
Dilacerando-me em uma forma sem pedaços,
Arrebatando minha própria alma para que não houvessem traços
De faíscas ou de luz, que me salvassem do inferno.

Atirando-me à queda
Das batalhas com ferro
Nas quais logo me perdi
E tornei-me cego.

Abandonado pela alma
Enfraquecida pelos ruídos
E pelos dizeres externos.

Desamparada e,
Agonizante sobre as ruínas
De mármore
De sangue
Num sussurro frio e gélido.


       Foi preciso que no cárcere eu me perdesse para que minha alma encontrasse, talvez, a minha catarse. Para que na margem do desamparo, das rochas vermelhas, do miradouro carmesim, alguém se sentasse ao meu lado. Porém, certo tempo demorou até que eu descobrisse que esta personagem nada mais era do que simplesmente Eu dentre os escombros no espaço. Agora que descobri o verdadeiro valor de estar sozinho, a presença de minha alma muito mais valia.

Espero para ser liberto,
Quando me reencontrar com Psique.
E então serei livre
Finalmente podendo dizer
Adeus ao Deserto...

"De rochosas pinturas
Famosos rabiscos de dispersos retoques
De nenhuma chama impura
E uma só história..."

29 de outubro de 2011

E o deserto se silenciou [9]

O deserto se silenciou
E os ruídos se acalmaram
Os vazios se aglomeraram
E os vaga-lumes se separaram

Assim foram narrados meus dias desde então.
Sem vida, nem movimento.
Apenas aqui o vento,
A velha areia, e as montanhas carmesim.
E eu, a vagar sozinho,
Como a morte que procura a mim.

       Estar sozinho é como verdadeiramente estar a um passo do precipício, onde à frente está a morte, e em volta os espinhos. Não temos para onde correr até que os céus nos iluminem a alguém. E enquanto eles permanecem selados, a angústia nos aprisiona na indecisão entre esperar ou morrer. Porém, o único meio de escapar dessas opções seria pela fé.
       Então eu me pergunto, onde está a minha fé?
     Sei que ela não se foi, mas encontrá-la dentre os escombros de minha alma seria um grande desafio. Minha fé poderia estar num lugar bem longe daqui... De onde ecoam os lamentosos e incrédulos gritos de Psique; como quem pede por socorro, mas em silêncio, gritando para dentro de si a rendição, e desistindo da própria vida.
        Mas eu o ouvi.
      E a cada noite em que sonho observo-o de lá das nuvens: um gato solitário e pensante, sentado numa superfície rochosa, quase desaparecido nas profundezas dum abismo. Ele olhava triste para algo que lá embaixo, na escuridão, se formava. Talvez fosse um desejo, talvez uma miragem. Mas logo desviava o olhar e emitia um miado curto, e gélido, que ecoava para o infinito adentro das trevas; e tornava para dentro de uma fissura que se encontrava logo atrás de si, na parede daquela "garganta" do deserto. E lá ficava, talvez escondido, enquanto o sol lá em cima o condenava com os últimos raios do crepúsculo, emitindo ondas vermelhas de nostalgia.

"Lembranças que se foram, que formam e transformam, reminiscências em aurora.
Estrelas do agora, há muito envelhecidas na memória,
Desabando sobre si numa supernova."

23 de outubro de 2011

Última tarde [8]

       Quando acordei, o clima novamente estava seco. Olhei ao redor e, como se a profecia dos meus sonhos tivesse se revelado, Psique não estava mais lá.

Fiquei decepcionado, comigo, com ele,
E novamente pensando nela.
Não sei quanto tempo se passou,
Mas se existe uma coisa que eu sei bem
É que memória não tem data.

Nela escolhemos o que armazenar.
Escolhi pois guardar sua face, seus olhos.

Nela... escolhemos o que guardar,
E a lembrança para sempre brilhará.

Psique seria o único então
A me libertar disso.
E seria então, o único a resgatar meus sorrisos.
Mas deixara pedaços pelo caminho,
Deixara o corpo de uma amizade, em membros distorcidos.

- Arquivos da Pique

22 de outubro de 2011

Última tarde [7]

       Fomos além de suas planícies, como filósofos ambulantes, perscrutando as mais perigosas, formosas e ásperas montanhas do deserto. A chuva havia dado tempo suficiente para que tudo isso ocorresse, agora que se lançava novamente, era hora de sentar, refletir e descansar. Procurei um lugar que ainda permanecesse seco para nosso descanso, e lá ficamos, fixos naquela esplêndida altitude, observando de uma nova perspectiva o lugar de onde viemos. Dali, tudo o que tínhamos visto antes se tornava uma bela paisagem. Um panorama magnífico em que avistávamos os quatro cantos do deserto se encontrarem com o horizonte; além disso, apenas o radiante céu que gradualmente perdia sua cor. O sol, que já chegara ao seu fim, ainda sussurrava aos nossos olhares  com seus últimos, os mais belos, raios cristalinamente vermelhos  como seria eterna aquela noite. Arrebatando o céu azul, e revelando a nós um miradouro carmesim. Contrasteava os pássaros, aparentes rabiscos, que vagueavam sobre aquela vasta planície, e chamava a atenção para a densa negridão que se formava na garganta dum abismo, a consideráveis metros de distância. Era como uma enorme fissura, um acidental corte, ou uma pequena cicatriz na face da Terra. Mas não deixava de ser o maior dos perigos de nossos descuidos.
        A chuva continuava, agora mais calma, enquanto chegava a noite. Produzia um som, uma incessante melodia, acompanhando como uma partitura as estruturas das montanhas; ambientalizando, e transformando, aquele momento numa das mais inesquecíveis memórias de minha vida. Eu, Psique, e o solitário deserto, silenciosos, emitindo histórias em segredo pela textura de cada olhar. Quando a lua surgiu, e se pôs lá no meio do céu, fiz minhas rezas e selei o olhar. Simplesmente recostado numa parte da montanha, que oferecia como um teto, uma de suas caricaturas rochosas. Então adormeci, mergulhando no submundo profundo das memórias. Não sei se eram reflexos do que meu espírito, no mundo real, observava. Mas pareciam bastante verdadeiras para o contexto dos meus sonhos que, geralmente, são uma convulsão de pensamentos sem nenhum nexo. Eu via Psique (como se estivesse acordado) aflito, reprimido pelos trovões daquela noite. Ouvi-lo pela primeira vez, mesmo que em sonho, miar, talvez pedindo por socorro. Eu estava ali, mas não conseguia me mexer, apenas presenciava seu terror, que por fim se transformava num pesadelo para mim também. Eu o via, e ele olhava para mim. Logo então o senti, como se estivesse por baixo de sua pele, e ele olhou para dentro dos meus olhos como se conversasse com tudo aquilo que eu sofria, como um choque, uma ligação diretamente da alma; da psique; dos olhos negros daquele simples gato. Eternos e efêmeros segundos, em que vi, e ressenti, a dor de ser abandonado; e a dor de ter que abandonar.

Psique se virou, lentamente, e me deixou.

O peso de tudo o que estava aprisionado; o medo, a aflição, falou mais alto. Ele se foi, e tudo o que deixou foi apenas um rastro de lembranças e carinhos despedaçados pelo chão.

- Arquivos da Psique

15 de outubro de 2011

Abdul e Psique [6]

       Três dias se passaram. Durante esses, vivi e aprendi com Psique. Ao seu lado, minhas ideias se tornaram mais claras; o valor da sua companhia proporcionava-me segurança. Certas vezes, tinha a impressão de que (em meu subconsciente), já entendia do que ele, por gestos, fazia-me refletir. Porém, se realmente eu soubesse, sua presença ainda seria fundamental para que eu resgatasse os princípios que esqueci.
       Era um simples gato, de aparência frágil, mas com uma alma brilhante dentro de si. Em certos aspectos, poderia até dizer que ele era parecido comigo: em seu olhar que se perdia nas imperfeições do horizonte; pelos traços estreitos e finos, de tristeza, que transcorriam em sua face.
      Como disse, éramos dois, como a um só. "Mapeando" o deserto e procurando respostas para nossas mazelas. Sabíamos que cada um ali conhecia bem as próprias dores, e estávamos cientes também que não compartilharíamos elas (não com palavras silábicas), pois, em nossos longos silêncios, confessávamos um ao outro essas palavras que nenhuma outra linguagem poderia expressar. Ele me trazia os velhos conceitos, e eu, era a ponte que o ajudava atravessar as montanhas e nossos obstáculos.
     E assim se passaram dois dias e meio, quando, no fim de tarde de segunda-feira, enquanto o sol se punha a adormecer, a chuva severa novamente se iniciou. Logo quando nos víamos nas mais altas montanhas do deserto, deixando para trás apenas um abismo inexplorado.

- Arquivos da Psique

11 de outubro de 2011

Albedo [5]

       Viraste meu mundo do avesso, pequeno inferno. Ultimamente, já não entendo mais qual parte do mundo é real, ou imaginação. Mas vi um gato vagar por aqui. Não sei quanto tempo se passou, nem se estou velho demais, porém as cores eu ainda enxergo bem, pois, ele era laranja com algumas manchas de cor marrom. E magérrimo. Poderia ser ideia do pensamento para que eu não me sinta absolutamente sozinho, como poderia ser alguma resposta de Deus. Não sei onde, no poço onde estou, encontrei fé, porque, Ele ouviu minhas preces.
       Certo dia, estava a passear por entre as montanhas carmesim, quando me deparei com passos delicadamente sutis. Não deve ter notado minha presença, ou apenas ignorou, mas dava voltas pelos caminhos já percorridos como quem espera para ser encontrado. Caminhava, pelos becos, sempre rente às montanhas, como se fossem seu único refúgio. E eu a observar, como aqueles movimentos frágeis de um gato faminto me fascinavam. Chovia, mas miseramente em relação à tempestade de antes, estava cessando. Era a metáfora perfeita para meus problemas que começavam a se resolver. Estranho é que, mesmo chovendo, ele não procurava abrigo para se esconder. Senti que precisava ser encontrado.
       Eu, então, o acolhi. Era meu único amigo na imensidão do deserto. Não nego que eu estava faminto, mas resisti, e compartilhei o pouco que tinha. Éramos dois, como a um só.

Abdul, e Psique, assim como o chamei.

- Arquivos da Psique

Jamais [4]

       Mesmo que o tempo tenha enterrado suas pegadas, eu ainda as vejo na areia... Como se seu olhar não mais me percebesse, mas sua voz ainda permanecesse em minha cabeça, repetindo, várias vezes, exatamente como me chamava, de Abdul, e de amor. Mas a cada ponto, ecoa lá no fundo do meu coração, o ruído que deixou da nota interrompida. Nós, juntos, seriamos uma canção tão perfeita. Já faz dois meses, e eu continuo a escrever cartas ao vento. Minhas palavras estão secando. As montanhas carmesim estão se acinzentando. O sol se põe, e eu vou me ajeitando, para mais uma noite pensando em ti. Alimentando esperanças enquanto, na fila, espera a raiva que fervilha de vingança.
       Cárcere, filho rebelde da Catarse, por que não me deixa em paz? Por que não extirpas do meu pensamento, e contigo, leva todos aqueles momentos? Não me faças realizar a desistência; lançar-me de joelhos ao chão e esperar que, em frações de segundo, a tempestade de areia corroa-me até que eu vire poeira. Por que é tão difícil aceitar (ou esquecer)? Simplesmente porque não fui preparado para um jamais. É tempo demais. Consta que o infinito é distinto e homogêneo, mas carregá-lo nos braços, seja ele prometido de eternidades ou vazio como um jamais, deve ser perturbador... O que fazer, então, se não vou esquecer? Lamentar, desamparadamente lamentar, se não a morte, ou enlouquecer.